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  • Foto do escritorEquipa CAeCP

Quando nas Salésias três destemidos jogadores desafiaram o regime

A atual conjuntura política e sócio-económica volta a fazer-nos questionar o quão seguros serão de facto os pilares em que assentamos as nossas democracias – seja pelo panorama internacional, com uma escalada autoritária um pouco por todo o mundo; seja pelos tímidos, mas preocupantes abanões protofascistas que começam a fazer-se sentir em Portugal. Neste último caso, os tiques de alguns intervenientes remetem-nos para um passado não muito distante, no qual a mão de ferro do Estado Novo oprimia e controlava todos os aspetos da sociedade – incluindo, naturalmente, o futebol.


Na história do fascismo e do futebol em Portugal, o Belenenses é injustamente relembrado como um beneficiário do regime. Uma conclusão retirada de evidências superficiais que ignoram o contexto da época e que se baseiam numa pura lógica da batata, passe a expressão. Dizer que o Belenenses era um favorito do Estado Novo por ter tido Américo Thomaz como Presidente é ignorar o processo que o levou a esse estatuto, que incluiu a demissão em massa da anterior direção. Afirmar que o Belenenses aproveitava ligações ao poder político é passar por cima de inúmeros episódios em que esse mesmo poder político prejudicou o clube, nomeadamente na expulsão do campo das Salésias para ali se realizar uma construção nunca iniciada. Inventar que o Belenenses tinha favorecimento dos árbitros por ser um dos clubes do Estado é narrar uma realidade diametralmente oposta à verdadeira, não valendo sequer a pena dar exemplos de partidas onde o clube foi escandalosamente prejudicado pelos senhores do apito.


São estes apenas alguns casos de como o Belenenses nunca beneficiou com o Estado Novo, muito pelo contrário. Foi (e é) uma instituição que, dentro de campo, tinha (e tem) de enfrentar mais do que uma equipa; e que, fora das quatro linhas, não tinha (nem continua a ter) direito às mesmas ajudas institucionais que sobravam para outro par de emblemas. Neste contexto, sobressaem inúmeras estórias de resistência, sendo uma das mais populares a que teve lugar nas nossas Salésias a 30 de janeiro de 1938, num Portugal vs Espanha.

Cerca de 25 mil pessoas preencheram as bancadas das Salésias para assistir ao jogo

CONTEXTO HISTÓRICO DO JOGO


Em 1938, a Europa caminhava a passos largos para uma guerra infernal, os EUA recuperavam do "crash" da bolsa de 1929, o exemplo da URSS no terreno socialista deitava as primeiras sementes para revoluções proletárias noutras latitudes, antecipando o período de Guerra Fria que caracterizaria as décadas seguintes. Vivia-se, sem dúvida, uma era única que marcaria o futuro. Mas em Portugal, entrávamos apenas na segunda década da noite fascista e ainda demorariam outros 38 intermináveis anos até nascer o dia inicial inteiro e limpo. Um país que ainda não havia recuperado totalmente da instabilidade da 1ª República e que se caracterizava agora pela pobreza extrema, o analfabetismo, a exploração laboral, a repressão das liberdades e uma política colonialista que, anos mais tarde, atiraria uma geração de jovens para a guerra.


António de Oliveira Salazar e António Ferro dão início a um embelezamento do regime, escondendo a fome e a pobreza do povo com um véu de tradição lusitana e exaltação ultranacionalista. Sobre a política de propaganda do Estado Novo neste período – que delineou uma imagem do país que ainda hoje persiste em diversos aspetos –, urge análise e estudo aprofundados em local apropriado, não num blogue sobre o Belenenses. Mas para contar a história do nosso clube, importa mencionar a Exposição do Mundo Português que se viria a construir em Belém no ano seguinte. Foi um momento definidor da zona de Belém, até então povoada por operários pobres – a paisagem do ocidente lisboeta mudaria para sempre, tal como a sua demografia. E a identidade do Belenenses, do seu movimento associativo, a partir dos anos 40 só pode ser discutida tendo em conta estas alterações.

Serve esta breve contextualização histórica para nos melhor localizarmos no ambiente em que se jogou o Portugal vs Espanha de que hoje falamos. Os nossos vizinhos viviam uma guerra civil entre as forças democráticas espanholas e os falangistas de Francisco Franco. A federação de futebol de Espanha encontrava-se também dividida e a equipa que se deslocara às Salésias para a partida era a seleção franquista – tratava-se, portanto, de um jogo com motivações políticas, uma prova de amizade entre Salazar e Franco.


O DESENVOLVIMENTO DOS ACONTECIMENTOS


O Belenenses fazia-se representar por três jogadores: Mariano Amaro, José Simões e Artur Quaresma, que jogavam então no seu estádio, no estádio do seu Belenenses. Os dois primeiros alinhavam no 11 inicial e Quaresma começava no banco. Mas não foi pela qualidade dos seus desempenhos nos 90 minutos que os três belenenses ficaram para a história do jogo – pelo contrário, não foi uma tarde inspirada a nível futebolístico para o trio, como adiante veremos. O episódio que hoje narramos dá-se instantes antes do minuto inicial, aquando do alinhamento das equipas perante as autoridades da tribuna, entre elas os Ministros da Educação Nacional e da Marinha e o General Amílcar Mota, em representação de Salazar. Casimiro Teles e o Marquês de Miraflores constituíam a comitiva espanhola. É diante deste quadro que aos jogadores portugueses e espanhóis é dado o sinal para erguer o braço, realizando a saudação fascista. Todos o cumprem, à exceção de três resistentes… Amaro, Simões e Quaresma.


Este último mantém-se imóvel, com o braço colado ao tronco. Amaro e Simões esticam os braços, mas mantêm os punhos cerrado – aos quais os editores da revista Stadium acrescentariam uns "dedinhos" na reportagem fotográfica do jogo, um retoque por certo exigido pela censura da altura. Por falar em censura: no relato do jogo no Diário de Lisboa do próprio dia, a troca de galhardetes entre capitães é descrita como “a única cerimónia preliminar”. O incómodo deste ato de ousadia espelha-se desde logo na maneira como a imprensa tentou cobrir o acontecimento.

Imagem do acontecimento, publicada na Revista Stadium com os punhos de Mariano e Simões retocados

O episódio de 30 de janeiro de 1938, olhando com os olhos de hoje, parece simples, e para gerações mais novas poderá ser mesmo estranho como é que um simples não erguer de braço pode ser um ato de resistência. Mas é precisamente pela simplicidade do ato e consequente impacto no regime que se percebe a dimensão da opressão do Estado Novo: a autoridade controla até os mais pequenos gestos e não compactuar com a ordem de saudação fascista é já de si um ato que convém não mostrar ao resto do país nos jornais do dia seguinte. Mariano Amaro e José Simões cerraram o punho para não darem a mão à palmatória fascista; Artur Quaresma não levantou o braço para antes erguer um dos mais significativos atos de resistência antifascista no desporto nacional.


Importa não esquecer que se tratava de um jogo vincadamente político, com figuras de dois movimentos fascistas na tribuna e militares da Legião Portuguesa e da Falange Espanhola nas bancadas. Como se a ação dos jogadores não fosse já ousada por si só, fazê-la nestas circunstâncias era digno de castigo. A longo prazo, por exemplo, Amaro viria a sofrer desportivamente pelo ato, nunca chegando a capitão da seleção nacional apesar de, segundo a imprensa de então, ser um dos maiores jogadores portugueses da altura (e de sempre, acrescentamos nós). Mas as consequências imediatas foram bem mais reveladoras do volume da coragem dos nossos resistentes jogadores.


AS CONSEQUÊNCIAS


Os três jogadores são interrogados pela PVDE – a tenebrosa polícia de vigilância de Salazar, mais tarde renomeada para o mais comummente usado PIDE – e Mariano Amaro e José Simões são mesmo presos no dia 16 de fevereiro, como comprovam as suas fichas. O motivo para a detenção é vagamente explicado – “preso (…) para averiguações”. Sobre o que se averiguou ao certo na esquadra, nunca se saberá ao certo por previsível falta de registos da polícia e por falta de testemunhos dos próprios jogadores. Estes, aliás, seriam libertados no início do mês seguinte, totalizando cerca de duas semanas de detenção. Já Artur Quaresma revela ao jornal Record, numa entrevista de 2004, que no interrogatório da PVDE se justifica dizendo que se “esquecera de levantar [o braço]”, valendo-lhe tal desculpa a sua não detenção.

A ficha de Mariano Amaro

A ficha de José Simões

Impõem-se então duas questões: o que terá levado a PVDE a prender os jogadores apenas 15 dias depois do jogo? E porque terão sido tão rapidamente libertados numa altura em que um ato semelhante ao seu poderia valer uma pena duríssima? Para a última pergunta, José Centil, no seu livro “90 Anos de História”, sugere uma verosímil hipótese: “as consequências (…) não foram mais gravosas porque o regime não ganhava nada em mantê-los presos. Eram jovens e famosos e os propagandistas do Estado Novo não vislumbravam vantagem maior do que o risco de os prender” (página 87). Mal-intencionados dirão que tal se deveu a serem jogadores do Belenenses, um clube do regime que não terá demorado a pedir um "favorzinho" às autoridades. A realidade contradiz esta teoria: a libertação deveu-se à sua enorme popularidade, ou não fossem eles jogadores consagrados e populares – numa época em que, como vimos atrás, o Estado Novo sustentava a sua propaganda em figuras queridas do pobre povo. Puni-los seria um erro estratégico, comparável a, por exemplo, prender-se Amália Rodrigues (também ela, sabe-se hoje, uma aliada na luta antifascista) ou, para um exemplo mais próximo deste contexto, Eusébio.


Quanto ao atraso da detenção, poderíamos aplicar o mesmo cinismo de algumas más línguas e equacionar uma qualquer teoria da conspiração com parcamente sustentadas insinuações contra outros clubes. Por exemplo, na dúvida entre prender ou não prender os atletas com receio das repercussões políticas que a detenção poderia ter, a PVDE lá se decidiu a fazê-lo com algum atraso mas ainda a tempo de impedir Amaro e Simões de irem a jogo no dia 28 de fevereiro contra o Benfica – partida que o Belenenses ganhou por 2-1, mesmo sem a sua dupla de estrelas, como constata o livro “Datas e factos memoráveis de 1919 a 1999” da saudosa Ana Linheiro (página 61). Não querendo cair na mesma lógica da batata previamente denunciada, o Camisola Azul e Cruz ao Peito desfaz-se desde já desta teoria, que aqui serviu como um simples exercício retórico para tentar ilustrar o quão injustas e "cartoonescas" são algumas das ligações inventadas entre o Belenenses e o Estado Novo.


O atraso na detenção poderá, propomos nós esta hipótese à falta de mais informação, dever-se exatamente à mesma justificação da sua rápida libertação. A popularidade dos jogadores em causa pode ter deixado reticentes os inspetores da PVDE, indecisos entre punir sem demora o gesto rebelde do trio belenense ou evitar sobressaltos na população. A decisão de ir para a frente com a detenção pode dever-se ao ego ferido de um regime autoritário impiedoso, após dias de deliberação cuidada. De acrescentar que prender os jogadores na hora, perante cerca de 25 mil espetadores (segundo o Diário de Lisboa), era criar uma imagem indesejada diante do público; e prendê-los no seu local de trabalho (segundo as suas fichas da PVDE, Amaro era montador eletricista e Simões era serralheiro – operários como os adeptos que torciam por eles) poderia levantar uma onda de resistência maior e mais violenta por parte dos seus colegas de trabalho. Muitos fatores terão pesado na decisão de levar à esquadra Amaro, Simões e Quaresma, pois estariam em jogo graves consequências para o regime – daí a demora na detenção dos dois primeiros.

Mariano Amaro e Artur Quaresma no interior das Salésias, sob olhar atento de dois jovens rapazes da praia

CONCLUSÕES


Poucos mais detalhes se sabem sobre este episódio. Por ser um acontecimento esquecido na grande enciclopédia do ludopédio, dificilmente saberemos mais sobre o assunto. Quem escreve a história do futebol português – e sobretudo os capítulos dedicados à resistência antifascista no desporto nacional – tende ou a deixar de fora o Belenenses, ou a colocá-lo no lado errado da narrativa. Em todo o caso, o facto de ainda hoje aqui nos debruçarmos sobre o dia 30 de janeiro de 1938 é a prova de que o ato de Mariano Amaro, José Simões e Artur Quaresma foi de assinalável bravura, rebeldia e ousadia. Sem eles, perdia-se um símbolo de coragem dos belenenses e um contributo dos rapazes da praia para a resistência antifascista contra o Estado Novo – que, fora do estádio, ganhava contornos cada vez mais heroicos e uma reação opressiva cada vez mais violenta.


O próprio jogo ficaria perdido na memória. O contexto histórico que o envolve é de facto interessantíssimo, mas os 90 minutos foram, lendo os relatos da época, perfeitamente vulgares. O Diário de Lisboa escreve duas páginas de resumo da partida com uma prosa entusiasmada que ainda consegue disfarçar a banalidade do jogo jogado. Um golo solitário de Pinga dá a vitória merecida a Portugal, apesar da boa segunda parte dos espanhóis. O único dos três resistentes belenenses digno de menção é Simões, que fez boa dupla defensiva com Gustavo. O que mais se destaca da cobertura jornalística do Diário de Lisboa é mesmo o registo fotográfico das bancadas das nossas Salésias, repletas de gente.


Os anos que se seguiram, como já vimos, privaram Amaro da braçadeira de capitão. Sobre o assunto, Quaresma viria a dizer mais tarde que “nunca fui político, mas embirrava com aquelas coisas do fascismo. O Barreiro era foco de comunistas opositores ao regime e eu era amigo de muitos.” Já José Simões viria a falecer precocemente em 1944 e, de entre os três, é porventura o nome menos recordado no seio dos adeptos do Belenenses. Em jeito de homenagem ao virtuoso defesa que punha no jogo “uma comunicativa alegria”, replicamos abaixo a breve nota do seu falecimento no jornal do clube, pela altura do 25º aniversário do clube.

José Simões, assinalado com o número 5, na equipa do Belenenses da época 1933-34

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